O PERDÃO

(Comentário relativo aos textos bíblicos do 24o Domingo- 15/09/02)


A leitura do livro “Eclesiástico” (27,33–28,9), se refere a rancor e ira como instrumentos do mal; estes isolam a pessoa no fechamento de sua mesquinhez com autodefesa, transformando-a em ameaça para a convivência. Só, na medida em que nos abrimos aos outros, damos conta de receber e oferecer o perdão. Porém, o perdão não é simplesmente dado ou recebido; perdão se festeja em um clima de reencontro. Perdão não é uma esmola que se dá a um pedinte; perdão é, antes, um abraço que simboliza, inicia ou confirma uma amizade.

Quando refém da ira, a pessoa se fecha às bênçãos que lhe podem chegar de dentro e de fora. E mais do que de fora, ela é convidada a desobstruir e acolher tudo que há de agraciado dentro de si mesma. Ali, Deus habita. Se, de alguma forma, dizemos que toda cura tem algo de espiritual, é porque a perícia do médico, a eficiência do remédio e a colaboração do paciente requerem atuação interior do espírito. Ora, o gesto de perdão, dado ou recebido, ativa a possibilidade de renovação atuando em nós e sobre nós. A recusa do perdão é sintoma de ódio destruidor.

Diz a leitura:”À luz da morte, lembra-te de tua pequenez”; ou seja, assume tua condição de ambivalente, inacabado e dependente; e não te perderás no que tu mesmo deves nem no que outros te devem. No Evangelho, Pedro quer saber de Jesus qual é o limite de perdoar dívidas repetidas. A lei impunha o dever de reconciliação, mas deixava a porta aberta para punição, a partir do quarto gesto de perdão. Ao dizer “setenta vezes sete”, Jesus não impõe limite; a medida do perdão tem a ver com o infinito. E Jesus ilustra sua resposta com uma parábola.

Quem é perdoado no grande, não deve perdoar no pequeno? O sentido profundo ´este: entre o coração de Deus e a resposta humana há uma distância infinita. Na comparação, Jesus se refere a uma dívida que corresponde a sem número de anos de trabalho, sendo esta perdoada; a outra dívida, insignificante, o funcionário recusa perdoar. O ensinamento é que o amor de Deus há de ser nosso espelho. Porém, o perdão não se limita a uma passada de esponja que apaga o que aconteceu. Não podemos fechar os olhos ao mal que é praticado, com seus efeitos nefastos

A insensibilidade social faz da dívida ou culpa uma ameaça para a ordem; o que evita ou anula a dívida é o respeito à boa convivência. Inseridos na comunidade e reciprocamente conscientes de alguma dívida, tornamo-nos mais responsáveis, e evitamos violência e exclusão. Se a culpa é inerente à condição humana, a solidariedade faz da dívida um berço de conversão. Todos sofremos a culpa e nos beneficiamos com o perdão. Porém, não raro a dívida impõe uma ferida narcisística; é como se o problema não fosse meu.

A negação rejeita a própria vulnerabilidade e dor, e pode impor a fuga no álcool, na droga, no sexo e no dinheiro. A raiva insinua que a culpa é só dos outros, o que mergulha em auto-compaixão. A resistência procura negar que se tem parte no mal, suscitando mecanismos de defesa, como fantasia, repressão e separação entre bem e mal; a depressão leva à auto-acusação com impotência de se abrir ,perdendo tempo e energia; a aceitação afasta da raiva e envolve na graça com perdão; ajuda a pessoa a se reconciliar consigo e com os outros na comum ambivalência. E nasce a paz.

No terreno da culpa, movemo-nos entre agressão destrutiva, resignação apática, maledicência crônica, respeito pelo outro, auto-defesa patológica e reconciliação. E temos de precaver-nos contra o perdão fingido, em que manifestamos pretensa superioridade moral; contra o perdão compulsivo, que mascara um ódio reprimido; e contra um perdão mágico, como se pudéssemos conjurar o destino, anulando o que houve. Tais soluções provisórias visam benefício próprio, mas implicam um poder manipulador que não é capaz de reintegrar as relações.

Vejamos alguns exemplos de devedores. O profissional que estudou na Federal, e não investe no social, é devedor; o padre ou pastor que exerce sua missão, sem harmonizar as relações, tem culpa; uma político que abusa de verbas do governo, é devedor; um terapeuta que não ajuda a libertar seus pacientes, tem culpa; um governante que, irresponsável, não cumpre promessas, fica com dívida; um comerciante que cobre além do justo e maltrata crianças de rua, tem culpa; o homem que abusa sexualmente de meninas pobres, é devedor; o professor que relaxa no ensino, tem culpa.

Um líder político que persegue terroristas, recorrendo a discriminação e violência, é devedor; um cidadão que, votando de modo interesseiro, se omite na política, tem culpa. Os pais que mimam demais algum filho, se tornam devedores; o rapaz que engravida moças e não assume os filhos, tem culpa. E eis que dívidas não assumidas ou aparentemente perdoadas vão multiplicando injustiça na convivência. E quanto maior o poder, mais se usam dois pesos, duas medidas. Quem anda de mãos totalmente limpas? Todos ficamos devendo, uns aos outros.

Alguém observou: “Não se cura um aleijado, dando-lhe um manto para cobrir os membros deformados”. A dívida, o pecado, a ofensa não é uma mancha na roupa que pode ser lavada sem o conhecimento do proprietário. Antes, é um erro que deve ser reparado, é o desequilíbrio em uma relação que deve ser restaurada, é uma destruição da vida que deve ser refeita. Oferecer um coração aberto a quem errou, não dispensa de conscientizá-lo do erro e, pela bondade, de ajudá-lo a corrigir o mal que praticou. Ser bom é fácil, ser fator de acréscimo é algo exigente.

Como lidar com a condição humana, que se manifesta rica em dívidas, pecados e ofensas? A fragilidade seja como irmã a conscientizar-nos da bondade de Deus e da dignidade de cada pessoa. Jesus nos ensinou a rezar: “Perdoai nossas dívidas como nós perdoamos a nossos devedores”. Esta súplica pode significar: Fazei-nos ver o sentido da culpa, as motivações que a provocaram; ajudai-nos a assumir a culpa, ensinai-nos a viver com ela de modo construtivo. Não deixeis que permaneçamos reféns de culpas sofridas ou cometidas.
Este pedido nos eleva muito acima do aspecto material e da dimensão psicológica da culpa; ele nos faz reconhecer e assumir nossa limitação humana, nossa imperfeição; ele nos liberta do medo auto-punitivo, do isolamento psíquico e da depressão. Este pedido nos insere na dinâmica da lei que nos vincula aos outros e nos responsabiliza por nossos atos. Ao mesmo tempo, nos confirma na fé em que Deus nos abraça em seu amor. Se estamos interconectados como irmãos devedores, somos todos, acima de tudo, filhos e irmãos, envolvidos por um clima de gratuita reconciliação.

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Frei Cláudio Van Balen