A ARTE DE VIVER
Revisando o Eclesiastes
A vida está encoberta por
sol e nuvens, variáveis inúmeras a condicionam,
pólos diferentes e até opostos a compõem.
Que utilidade ela pode ter e qual o sentido que a torna luminosa
a ponto de suavizar inseguranças, perdas e dúvidas?
Se há tanto de atraente e sedutor na vida, ela nos traz
por desafios mil em uma fatal efemeridade. A pluralidade de promessas
e exigências, com problemas e possibilidades, tornam a vida
algo de surpreendente e incontrolável. Vida combina com
surpresa.
Sempre original,
a cada dia a vida diverge de si mesma e nos encontra despreparados.
Se tudo, que acontece debaixo do sol, nada tem de novo, é
também verdade que o discernimento percorre tantos caminhos
quantas cabeças há. Perscrutar o sentido do que
se impõe é não só problema de fatos
como também de interpretação. O horizonte
de cada pessoa tem tudo a ver com a caminhada que faz. Se a sabedoria
tem algo de universal, sua luz se fraciona pelo lugar de nossa
observação.
Razão pela
qual as desilusões se multiplicam na medida em que, entre
penumbra e mistério, avançamos no caminho da vida.
Como a terra é generosa em acolher sementes, das quais
a maioria, perecendo, serve de adubo, assim a maior parte de nossas
experiências está a serviço de algo diferente.
Muitas luzes se apagam para restar, finalmente, uma simples máxima:
As experiências se vão, fica a arte. Vaidade? Tudo
se esvai como o inquieto fluir de um sopro. A vida é gratuidade.
Graças ao
vai-vem de tantas opiniões, realizações e
sofrimentos, alcançamos alguma consistência na arte
de viver. Professar certezas é correr atrás do vento
que se desfaz. Quem se afadiga demais, colhe um hálito
que se desintegra. Quem acumula coisas sem usufruí-las,
as transforma em desventura para outros. Quem almeja gratidão
por seu próprio desempenho, não sabe dispor dos
tesouros que lhe são confiados. Desperdiça o infinito
em si, quem recusa o diferente em e fora de si.
Poluímos
a vida por incoerências que se fazem chagas no tecido do
tempo. Quanta vaidade! Se não há conclusão
final, por que valorizar tanto mais uma que é minha? Somente
a serenidade amplia os horizontes da verdade. Ela nos ensina a
degustar as alegrias simples que a vida põe em nossos caminhos.
Apenas uma nova geração começou e, logo,
se eclipsa para dar lugar à outra. Passagem, como a terra
que gira em torno do sol, a vida é vento que, sem cessar,
muda de direção.
Então, por
que agitar-se tanto? Não passamos de “uma semente
em véspera de romper”. A água do rio acrescenta
algo ao nível do mar que dela vive? Há algum proveito
no incansável repetir da mesma fadiga? Em nada, ninguém
alcança uma posse definitiva. Em tudo há vaidade.
Alcançou algo? A porta já se abriu para que a mudança
se faça. Um exaurir-se extenuante e monótono é
a sorte de quem não avança na sabedoria. Somente
a fruição traz real vantagem e progresso verdadeiro.
Viver é fruir.
Ninguém transfere a outrem as experiências que adquiriu.
Cada geração refaz seu percurso nas ondas de dor
e alegria, de esperança e desilusão, de justiça
e exclusão, de solidão e comunhão, de paz
e guerra, de morte e vida. Em tudo há vaidade. Somente
quem se abre à permanente novidade do ser e crer, se mostra
capaz de sorver a beleza do viver. E nisso não há
nada de novo debaixo do sol. O vaidoso perece em sua própria
ignorância. O sábio aprende do que já passou.
Quem conhece o tempo
das sementes, nossos valores e sonhos? A riqueza sobrevive a contratempos?
A acumulação se faz objeto de herança? A
paz pode ser construída por ciência e tecnologia?
O que hoje sei, tenho e posso se faz garantia do bem-estar de
amanhã? Um dia, um ano entrelaçado ao outro é
vitória sobre a morte? Inútil é toda agitação
e vaidade das vaidades é buscar vantagem em tudo. Só
quem sabe receber e desfrutar dons, goza de saudável alegria.
Na totalidade da
existência, os atos têm seu próprio valor.
Há tempo para tudo, para nascer e morrer, para a alegria
e a tristeza, para a solidão e a convivência, para
fazer-se presença e isolar-se, para agir e repousar, para
contemplar e se surpreender diante das circunstâncias que
fogem a nosso controle. Em tudo há vaidade. Ninguém
marca o tempo para si mesmo. Esse lhe é dado. Foge a nós
saber a importância de um ato e do conjunto de nossa vida.
Em tudo, o sábio supera a si mesmo.
Ele não é
senhor de sua existência, mas cidadão administrador.
Ninguém avalia a ação do Mistério
sobre cada momento do existir e tampouco é capaz de conhecer
o sentido global de tudo que lhe acontece. Tudo pode ser vaidade.
Elegante é sugar a felicidade do momento fugitivo e de
cada minúscula realidade, enquanto admiramos um desígnio
que nos ultrapassa. No fim, a morte se impõe, ela nos iguala
na mesma sorte. O sábio confia aos cuidados de Deus seu
ir e vir.
Ele mesmo, ciente
da volatilidade de tudo que há nesta terra, se dispõe
a aproveitar dos prazeres que a vida lhe oferece e Deus lhe permite:
o alimento que sustenta, o vinho que alegra, o empenho do trabalho
compensador, o encontro de amigos, a vida dividida com o cônjuge
amado. Para não se deixar corroer pela desilusão,
o respeito à vida se lhe faz vacina eficaz. Honrar a Deus
é evitar todo excesso, na justiça e no mal, e acolher
o sublime que não compreendemos. Fruir é a lei de
sempre.
Viver é mergulhar
no cotidiano, com seus encontros e desencontros edificando a identidade.
Não acresce nada a vontade de controlar o próprio
existir. Mais que fatalidade, há admirável confluência
de fatores, espaço aberto para o exercício de criativa
responsabilidade. Viver é arriscar-se, tentando apossar-se
da riqueza escondida em nós. Inventar a roda não
é preciso. Urge aprender a manuseá-la para espantar
a mesmice. Viver é ser outro na dança da vida. Viver
é acontecer.
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frei Cláudio
(cf Maurice GILBERT, sj, “Qoelet o la difficoltà
di vivere” em La Civiltà Cattolica , 2003 II, pp.450-459)