ANENCEFALIA
NA PERSPECTIVA DE FÉ E ÉTICA
Deus nos fez filhos
seus para que, na liberdade, nos conduzíssemos como pessoas
autônomas e não como escravos. Longe do medo e cheios
de coragem responsável, somos convidados a imprimir direcionamento
e sentido a nosso viver neste mundo. Avessos a sacrifícios
e holocaustos, a divina compaixão é nossa riqueza.
A própria morte assumida com dignidade se faz limiar de
ingresso para vida em plenitude. “Onde eu estiver, vocês
estarão”. (João 17,24) Mais que objeto,
somos seres relacionais.
Ética tem como objetivo o bom
cuidado pela vida e por tudo o que lhe diz respeito. Sua essência
está em fazer reconhecer e defender o valor único
da pessoa, sua dignidade dentro de suas possibilidades de relacionamento,
que estão no coração da convivência
e na base de todo progresso. Ora, em matéria de anencefalia
e de morte encefálica é hora de acolhermos, com
visão crítica, os dados da ciência e as luzes
da fé cristã. Não vale preconceito social,
sectarismo religioso nem integrismo jurídico com cegueira,
passividade e intolerância.
A ética, estimulada por cidadania e pela fé, orienta
na elaboração de respostas às interrogações
do mundo contemporâneo. É ausência de lucidez
avaliarmos fatos através de uma religiosidade retrógrada
ou de uma ciência bitolada e preconceituosa. A ética
remete à consciência dessa responsabilidade de imprimir
dignidade ao viver, inclusive assumindo a morte. A
anencefalia - ausência de um hemisfério
cerebral ou de ambos - e a morte cerebral
- estado de perda irreversível das funções
do córtex e do tronco cerebral – impossibilitam as
funções de relação. Cessa a ventilação
pulmonar, a pressão arterial, o reflexo ocular motor, a
respiração, a temperatura, a homeostase bioquímica.
Impõe-se a morte clínica.
Eticamente é importante reconhecer,
quanto antes, essa situação. Do contrário,
se cria uma situação de estresse familiar, nutrindo
falsas esperanças. Em gestações de crianças
anencefálicas, a mãe funciona como um aparelho ligado
até o momento do parto. Há, aqui, um problema ético.
Interromper essa ligação é uma opção
ética, um gesto de fé adulta pois, se não
for feito, a mãe e a família se vêem obrigadas
a um sofrimento perverso e a um gasto financeiro inútil
e prejudicial ao bem comum.
Nesse caso, a interrupção da gravidez nada tem a
ver com aborto, pois a vida não existe sem a mãe-aparelho.
Ao se proibir tal recurso, o feto é impedido de despedir-se
de uma vida que já não existe, o que implica desrespeito
para com a mãe, sendo s tratada como simples objeto sem
dignidade nem direito. Parece que, então, a mãe
é reduzida a sepulcro de seu próprio feto. Segundo
consta, não há nenhum registro de criança
acometida de anencefalia, cujo coração bata, maquinalmente,
por mais de algumas horas ou de alguns dias após o parto.
Cabe a pergunta: Por que é preciso aguardar nove meses?
Em nome de quê e de quem negar o óbvio? Nesse caso,
não há vida humana possível; a sobrevida
é sempre artificial e penosa para a mãe, a família,
a equipe de saúde e a própria sociedade.
De fato, há um grave problema
social : um profundo desconforto familiar e um desgaste desnecessário
no trabalho infrutífero dos agentes de saúde. A
situação é desumana. A ética nos faz
clamar contra a injustiça de maus tratos com desgaste emocional
e com gastos financeiros sem propósito. Insistir em tratamentos
estéreis é mera obstinação terapêutica,
impondo a outros o que não se quer para si. Tal postura
implica também uma imperdoável incapacidade de aceitação
do fim da vida. Negar a morte encefálica significa esquivar-se,
hipocritamente, impondo aos vivos um sofrimento sem sentido. Quem
alude ao “carma”, mostra-se desumano e anticristão.
Urge criar uma sensibilidade cristã com cidadania solidária
frente a preconceitos emocionais, culturais, jurídicos
e religiosos. Urge aprender a respeitar o fluxo natural da vida.
Urge não empurrar famílias para um mar de sofrimento,
que não gera benefícios. Ninguém tem direito
de expor ao ridículo a limitação do ser humano.
Não há motivo para encobrir a realidade com prepotência
jurídica e religiosa, espelhando irresponsabilidade na
prática da fé cristã e no exercício
da cidadania.
Somos convidados a superar o preconceito
contra a morte, como se ela não fosse parte da vida. A
morte é, sob múltiplos aspectos, a criação
da vida. A ninguém cabe resgatar, ilusoriamente, as pessoas
para uma dor prolongada. Médico, enfermeiro, psicólogo,
profissionais de saúde, agentes religiosos são chamados
a defender a vida. Vida de boa qualidade. Jesus advertiu: “Ninguém
imponha a outros um peso que não deseja carregar”
(Lucas 11,46).
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Frei Cláudio
van Balen:Teólogo e Psicólogo
Sérgio Bittencourt: Psicólogo e Ambientalista
Autores do livro
: ASAS NA RAÍZ (fotos de flores e poemas).