E U T A
N Á S I A
--------Em confronto com a avalanche
de cuidados paliativos pela saúde, está o lidar
responsável com doença, dor e velhice, o que coloca
em discussão o lugar da eutanásia. Administrar o
fim da vida é um dos grandes desafios da atualidade. Cabe
ao Cristianismo e à tradição católica
oferecer sua orientação, assinalando aspectos importantes
inerentes a este dilema. A fé em Deus – que lida
com salvação como libertação –
há de enriquecer o debate. Não lhe cabe influenciar,
diretamente, a elaboração de leis nem de defender
opções ou decisões políticas. Sua
tarefa é projetar luz sobre a formação de
opiniões relativas ao lidar com pacientes terminais e,
eventualmente, relativas a propostas de lei. É importante,
a partir da fé, iluminar e estimular a discussão.
Na discussão sobre eutanásia, apresentam-se problemas
ou perguntas diferentes que acentuam a complexidade do dilema.
Aqui, não cabe o lugar-comum, dizendo que, humildes e resignados,
temos aceitar vida e morte das mãos de Deus.
--------Responsabilidade.
Na atual convivência, doença e sofrimento assumiram
formas peculiares que abrem espaço à discussão
sobre cuidados paliativos e eutanásia. No passado, a ação
médica se impunha mais no término da doença,
na hora da morte. Na maioria dos casos, a doença não
era aliviada nem a morte evitada. As formas repentinas de morte
não evocam questionamentos éticos. Hoje, o problema
da “boa morte” surge no momento em que se coloca em
questão a responsabilidade humana frente ao sofrer e morrer.
Não parece ter sentido considerar a morte como entrega
ao fim “natural” da vida, em oposição
ao tomar o morrer em próprias mãos por apressar
a morte. À luz da fé, aquela entrega seria ideal
e desejável? A tradição cristã insiste
que Deus mesmo nos incumbe a assumir a responsabilidade de dar
forma a nosso existir e, portanto, também a nosso morrer.
Ora, na atual situação, na maioria dos casos, o
morrer já não é “natural”, estando
cercado de decisões médicas e de expedientes medicamentosos.
--------Cuidado
Médico. O morrer, portanto, tornou-se inevitavelmente
uma responsabilidade humana, rica em dilemas com escolhas fundamentais
que reclamam critérios a garantir um conteúdo cristão
às decisões. Ora, amplas possibilidades tecnológicas
acentuaram uma dimensão técnica aos cuidados médicos,
não raro às custas do aspecto individual e do bem-estar
dos pacientes. Antes, os cuidados visavam, diretamente, a cura
e a preservação da vida. Hoje, com freqüência,
a tecnologia tem como efeito um sofrimento intenso e prolongado,
com chance reduzida de cura. A eutanásia não se
reduz a um problema individual de auto-determinação.
Tem, antes, a ver com o sofrimento desumano provocado ou prolongado
pela ciência médica. A própria medicina paliativa
procura transcender o simples objetivo de combater doença
e prolongar vida. O cuidado paliativo visa, acima de tudo, a boa
qualidade do viver em todas as suas dimensões – corporal,
psíquica, social e espiritual – implicando também
o morrer.
--------Vida
digna e boa. Mesmo em casos exemplares de cuidados paliativos
– a serviço da vida boa e digna – podem surgir
situações de sofrimento acima do razoável.
Abre-se, então, espaço para o problema da eutanásia.
Surge, aqui, a discussão relativa à dignidade da
vida, suas fronteiras e a conseqüente responsabilidade médica
com suas eventuais nuanças. Ponderações de
pacientes, profissionais de saúde – física,
psíquica e espiritual – e familiares garantem a dignidade
da conseqüente decisão. Também em caso de eutanásia.
Esta jamais seja uma decisão individualista e leviana.
Em tudo prevaleça a preocupação com o que
torna a vida boa. Quanto mais este problema encontrar espaço
público na vida social, mais digna será sua solução.
Se este tratamento ou determinado tipo de vida ainda são
humanamente dignos é um problema do qual ninguém
pode fugir. Para os que se inspiram na fé, a resposta à
pergunta merece uma orientação desta fé e
um apoio da comunidade eclesial.
--------Envolvimento
pastoral. No âmbito da ação pastoral,
cabe tudo que diz respeito ao viver humano, sendo que nenhum assunto
pode ser tratado como tabu. Portanto, também os agentes
pastorais tenham coração e ouvido quando surge o
assunto da eutanásia. Claro, pode haver alguma reticência
– convém – quando se trata de uma ação
que envolve a morte das pessoas. Nossa tradição,
pois, testemunha um Deus que deseja para todos a vida e não
a morte; para ele, toda forma de vida tem seu valor por mais frágil
ou sem sentido que pareça. As limitações
da doença e a morte inevitável fazem parte da vida
de todos. Temos de nos ajudar para acolher e suscitar o que a
vida tem para oferecer. Um pedido de eutanásia pode, às
vezes, ser sintoma de medo. Façamos o possível para
atenuar a angústia e reformular alguma suposição
do que seja realmente vida boa e digna. Ao haver motivo fundado
para o pedido de eutanásia, pessoas abandona. Claro, uma
pessoa de fé pode fazer isso individualmente, mas o ideal
é que a Igreja, em seu pensar e falar, tome publicamente
a sério esses dilemas.
--------Decisão
médica e vida boa. Não basta que o médico
se revista simplesmente de uma perícia profissional, como
pode acontecer. O doente é mais que um cliente. Atrás
de um exame, de uma receita, de uma cirurgia há uma vida,
uma pessoa, uma história, um sonho. Não é
só o médico que determina o que é bom para
o cliente, sendo este mais que um consumidor inveterado. O cliente
não tem direito de renunciar à sua responsabilidade.
Por outro lado, em escolhas importantes, o cliente tem de sentir-se
escorado pelo médico. Em torno de doença e morte
há algo “mais“ que simples capacidade profissional.
Conceitos de vida boa têm tudo a ver com a visão
pessoal de mundo, por parte de médico e paciente. As diferenças
não devem ser ignoradas na decisão de formular e
conduzir o tratamento médico. Questões médico-éticas
evidenciam que o trabalho de médicos tem um aspecto normativo.
O que é medicamente considerado como bom e desejável,
isto também depende do conceito que se tem de vida boa.
Todos, indistintamente, temos de ter consciência dessa problemática
para que, de modo construtivo, a façamos objeto de um diálogo,
cada vez mais amplo e profundo.
Frei Cláudio
van Balen
( cf : De omgang
met zieken em stervenden, em TGL, 2000, 6, pp. 625-634)
Trad. : O lidar com enfermos e moribundos