GERAR VIDA EM MEIO A TANTA MORTE


“Dizemos violento o rio que tudo arrasta. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. (B. Brecht)

Frei Cláudio Van Balen
Teólogo, Psicólogo, Pároco do
Carmo Sion em Belo Horizonte


O tema nos leva a refletir sobre a pessoa humana em sua postura diante da vida, levando-a para uma plenitude maior ou desintegrando-a por forças da morte. Logo de início lembramos que a vida humana se origina e desenvolve na “relação”. E relação é feita de “diferentes”, não raro de aspectos contrastantes e sempre num clima dialético, onde a vida pode passar pelo caminho da morte e onde a morte pode receber a função de servir à vida. E já estamos confrontados com a complexidade do tema.

Dinâmica Básica

Na natureza biológica operam duas forças: uma faz o organismo ficar intacto como “unidade”, e outra o faz funcionar como “parte do todo”, em benefício de ambos. Assim, cada célula é um sistema com “identida-de”, e funciona como parte de uma realidade maior. Na medida em que ambos estes aspectos se relacionam em equilíbrio e mútua influência, há uma situação ideal benéfica, a serviço da vida. Mas onde se perturba o equilíbrio, ali surgem forças destruidoras, a serviço da morte.
Também no nível da vida humana atuam duas forças, dois “motivos” básicos que caracterizam a experiência humana e lhe conferem dinâmica e direção.
A primeira faz a pessoa auto-afirmar-se (self ); a outra faz buscar união com alguém ou algo (outro). Ambas são essenciais, mas sua interligação e atuação variam segundo a situação existencial e a história pes-soal de cada um. Aqui a liberdade em formação acentua a dialética.

O “SeIf-Motivo” cuida da auto-afirmação, conservação, defesa e expansão. Faz conservar posição ou posse uma vez adquiridas, e ampliar a esfera de influência. Confere energia para conquistar, manter e ampliar uma posição própria nas relações sociais. Aqui se busca reconhecimento das próprias qualidades e habilidades. Suscita separações e divisões, e cria também distância, quando está em jogo o próprio interesse ou quando se considera valorizar a posição ou opinião alheia como enfraquecimento da própria posição. Capacita a concorrer, a (se) superar, ou até a ir contra os próprios impulsos ou desejos imediatos.
O “Outro Motivo”, orientado à comunhão, move em direção ao outro ou a algo no ambiente. Faz buscar companheirismo, onde a pessoa pode sentir-se como parte de um todo maior e mais importante. Contém o desejo de formar uma unidade com o outro, inspirando abertura e receptividade. Caracteriza-se ainda pela atitude de serviçalidade, de auto-entrega. Está na origem de convivência, amizade, encontros, onde não se pode procurar, sem mais, posse, domínio e afirmação, porém deve mostrar-se sensibilidade pelo bem alheio. Aqui há um campo muito fecundo de tensões e conflitos, exigindo da vida humana que seja contínua aprendizagem de respeito e doação.

Desequilíbrio

O desequilíbrio entre os dois motivos básicos do comportamento humano, sobretudo quando reforçado por estruturas sociais injustas, está na origem de muitas formas de agressividade contra a vida. A título de ilustração, uma notícia veiculada pelo “Globo”: “Pedestres que atravessam a rua fora da faixa que lhes é destinada; motoristas que ignoram o sinal vermelho; o vizinho ouvindo musica aos berros; passageiros acendendo cigarros ao lado de um não-fumante, no ônibus; ruas e praias sujas, co-bertas de detritos; ónibus parando fora do ponto — multiplicam..se os exemplos de desrespeito aos direitos do cidadão, no dia-a-dia de uma cidade como o Rio”.
Há tempo o “Jornal do Brasil” noticiou: “O presidente da Associação Latino-Americana contra maus tratos infantis, o psiquiatra José Raimundo da Silva Lippi, disse que até o fim do ano 5 milhões de crianças brasileiras terão sido maltratadas física ou psicologicamente.” E “O Estado de Minas”: “Algumas crianças não se desenvolvem e não crescem normalmente por falta de amor e de cuidados. Essa conclusão foi apresentada em um congresso médico de Paris que reuniu especialistas do mundo inteiro... O traço peculiar desse nanismo psicossocial é que ele às vezes se corrige espontaneamente, quando a criança sai de seu ambiente familiar ou institucional desfavorável. Pode surgir em famílias perturbadas, que rejeitam a criança ou estão enfrentando dificuldades emocionais ou financeiras.”

Na psicologia se fala da problemática narcisítica que pertence inseparavelmente à vida, como perturbação do comportamento humano. Diariamente somos confrontados com distúrbios físicos, psíquicos e espirituais e com desequilíbrios sócio-culturais, que resultam em impotência, solidão, insegurança, alienação, frustração, desilusões, doenças, sofrimentos, injustiças, morte. E quando algo assim nos acontece, experimentamos o próprio limite, a fragilidade interior, contradições da convivência, incertezas da vida, e um auto-sentimento ferido. Confrontados com a própria pequenez e a debilidade da condição humana, somos questionados, desafiados, perturbados. E agora José? Assumir a realidade do jeito que é? Seria o ideal. E a partir disso, fazer algo em busca de uma transformação de si mesmo e da realidade. Porém, não raro envidamos esforços teimosos para negar nossa limitação, encobrir a ilusão, enfeitar a nossa ferida imagem ideal imaginária e salvar artificialmente a nossa face... O que exige um preço caro, como: stress emocional, uso de mecanismos de defesa, resistência agressiva contra os que imaginamos esta-rem ameaçando nosso exagerado sentimento de auto-valor ou imagem do eu. E eis que surgem iniciativas que deterioram a qualidade de vida, ameaçam a convivência e multiplicam sinais de morte!

Vida em Harmonia: Fundamento

Segundo a perspectiva cristã, a vivência humana tem como origem última e inspiração básica o mistério da Santíssima Trindade. Deus é “relação”, ou pluralidade na unidade graças ao Amor, O Pai é pai diante do Filho, nele e por ele; possui e conserva sua identidade no outro e graças ao diferente, O mesmo vale do Filho perante o Pai, e do Espírito Santo perante ambos. A dimensão “relacional” faz de Deus um ser em contínuo movimento interpessoal e de permanente renovação.
A partir deste dado, à luz da fé cristã, a pessoa humana, feita à imagem e semelhança de Deus, só pode afirmar-se como “indivíduo” na medida em que se realiza como “interdivíduo”. O individualismo coloca-se a serviço unilateral de uma auto-realização egocêntrica, sufocando a energia da vida e do amor.
Nas primeiras páginas da Bíblia, Adão e Caim simbolizam o poder arrogante (medroso) e coisificador do indivíduo que, para auto-afirmar-se, vê no outro um concorrente, uma ameaça, um inimigo. Por isto, o elimina, provocando assim a própria ruína.
Jesus é o “Novo Adão”, cuja dinâmica pessoal e personalizante consiste em viver “para fora de si”, em direção ao “Pai” e aos “homens”, os dois absolutos em sua vida; e isto sob o impulso do Espírito.
Nesta perspectiva, viver humanamente implica a capacidade e o esforço constante de reproduzir em si o mistério do próprio Deus, que é o mistério da “comum-união”, de inter-relacionamento que gera doação e criatividade na amorização. E isto, por sua vez, possibilita e fomenta a descoberta e a construção da própria identidade, na perspectiva e di-mensão de Deus.

Sonho-Realidade

A humanidade leva consigo um sonho.., O sonho da realidade em harmonia, da vida em desabrochamento, da convivência em clima de fraternidade. Um ideal, onde as diferenças de raças, culturas, sistemas políticos e religiões sejam respeitadas e promovidas pela dinâmica da justiça e fraternidade, gerando uma convivência pacífica e fecunda para todos os povos.
Sonho tão distante neste nosso mundo cada vez mais polarizado, onde num sistema económico único multinacionais comandam as relações comerciais e industriais e onde um poder monolítico determina verticalmente o exercício da política. Sistema demoniacamente verticalista, onde poucos usufruem das riquezas geradas pela ciência e técnica, enquanto as grandes massas são sufocadas na pobreza ou se arrastam na mais cruel das misérias, pólvora da mais temível bomba atômica!
A indomável dialética entre o fator individual e social, entre a realidade subjetiva e objetiva, entre o presente e futuro, entre o bem-estar individual e coletivo, entre a identidade pessoal e as estruturas sociais faz do homem um ser perseguido por fantasmas e acorrentado por suas próprias criações. Ou seja, um eterno prisioneiro na sua própria casa!
Basta olhar noticiário de TV, ler jornal ou observar a realidade do dia-a-dia para logo perceber mecanismos variados que geram morte. Insensibilidade de governantes, corrupção de políticos, omissão dos cidadãos, exploração de ricos, alienação de pobres, estruturas sociais injustas. Ou mais concretamente, falta de saneamento básico, ausência de urbanização, marginalização do homem do campo, doenças endêmicas, desorganização do ensino, falta de transporte, saúde pública desordenada, ensino elitista, desemprego, burocracia, leis sociais deficientes, justiça emperrada, analfabetismo, pobreza crescente, subnutrição, prostituição, aborto, drogas, violência urbana, infância marginalizada, etc.
Em grande parte, o homem é fruto do seu meio. “Dize-me com quem andas...” Estruturas sociais injustas produzem indivíduos com dose excessiva de agressividade contra a vida e a convivência, multiplicando focos geradores de sintomas de morte. Basta descuidar de uma vida mais digna para os indivíduos, e logo toda a sociedade fica prejudicada.
Percebemos aqui uma dinâmica conflitante onde nos movemos entre a vida e a morte.

Drama Simbolizado

Quem sabe, encontramos uma luz na estória bíblica da “queda”, analisando simbolicamente personagens, fatos e atitudes mencionadas.

A vida, na prospectiva de sua dinâmica e na realização de suas inesgotáveis possibilidades tem algo de “jardim” ou paraíso, onde é bom deter-se. Mas para poder saborear a riqueza do jardim, é mister não fixar-se nele passivamente e, sim, ousar sair dele por um empreendimento transformador; e, a seguir, tomar-se realmente seu dono ou morador. É, pois, algo de futuro que tem a ver com desejo ou sonho. De fato, a suprema lei da vida é o crescimento. Detê-la, é matá-la!

Uma dimensão do eu

Apresenta-se-nos a figura da “serpente”, que é uma dimensão da pessoa humana enquanto sugere e insufla o abandono do “status quo”, em busca de um estágio superior de vida e convivência. Também as personagens envolvidas: Deus, Adão e Eva são aspectos subjetivos (mesmo que não só!) que habitam e atuam no íntimo de cada um. Neste sentido, Deus representa a consciência, a luz auto-reguladora que indica o caminho; Eva, o desejo do novo; e Adão, a racionalização do poder. Vida tem a ver com um intercâmbio harmonioso destas várias dimensões a serviço do desenvolvimento progressivo da identidade pessoal, do intercâmbio relacional e do lidar construtivo com fatos e situações.
A “serpente” é o desejo, ainda não estruturado, que desperta para o inconformismo da adaptação e vem sugerir o sonho do novo, onde a pessoa é estimulada a se transcender, acima de fatores circunstanciais, tornando-se agente de seu destino, dona da situação na tarefa ou vocação de co-criadora. A sabedoria popular usa o termo “serpente” enquanto implica mudança (de pele) e astúcia; serpente ainda porque, simbolicamente, lembra a força (pro) criadora que, mal aplicada, pode até provocar ameaça à vida (veneno).
A fala da serpente, portanto, refere-se à voz interior que deseja mudança e rebela-se contra a ordem existente, enquanto oprime, para tomar o poder em suas próprias mãos, numa nova ordem que seja mais libertadora. Encarna o espírito de (r)evolução, de rebeldia em cada um de nós, sugerindo a libertação da ordem primitiva. Daí as palavras: “sereis como deuses: conhecedores do bem e do mal.” (Gênesis 3,5.)

Olhando nossa realidade

Há tempo, constata-se em nossa situação cultural uma rebelião em andamento, “a rebelião do sentimento”. Propaga-se a revalorização da emoção, do sentimento, da dimensão subjetiva, da experiência pessoal. Antes o coração que a cabeça; antes os sentidos que os números; antes a natureza que a técnica; antes o sentir que o pensar; antes o sonhar que o saber; antes a vida que a burocracia; antes a espontaneidade que a organização. Enfim, o sentimento do poder!

Quem não deseja sentir-se sempre e logo bem disposto e feliz? Se não o sou, logo visualizo fora de mim a causa do mal. Vamos sonhar um mundo diferente, onde não haja centrais nucleares, armas atómicas, poluição ambiental e ditaduras, nem de militares nem do proletariado, nem Igreja autoritária com tutela controladora, nem família fechada de machismo alienante e opressor. Convém reagir! O novo se impõe, é hora de mudar! Momento propício para a serpente em nós insinuar alguma sugestão de mudança.

Outras dimensões do eu

“Eva”, nossa dimensão “evítica” pode representar o contato com a realidade como um todo, a sensibilidade frente aos desejos, a percepção do novo que está para irromper. Seria a dimensão em nós que capta a sugestão da serpente. Mas aqui se esconde um perigo, O evítico em nós é ambicioso, impulsivo, apressado; quer compreender, e logo fazer para ter, possuir. “A mulher viu que era bom comer da árvore, pois era atraente aos olhos e desejável enquanto fazia entender as coisas”. (Gê-nesis 3,6). Porém, a realidade é complexa e ambivalente. Não basta o gesto mágico de “pegar” e “comer” para transformar a realidade. E há outro perigo!
“Adão”, o aspecto “adamítico” em nós representa esta tendência de reduzir o real à mera dimensão lógica da ciência e técnica, onde nos perdemos nos detalhes do imediatismo e das quiméricas promessas do “aqui e agora” (consumismo), desligando-nos do todo e, sobretudo, da dimensão comunitária inerente à pessoa e à realidade humana.
“Deus”, o aspecto “divino” do nosso interior faz vislumbrar essa complexidade que nos envolve. E somos advertidos. A busca do novo feita de maneira imatura, em vez de levar ao melhor, pode provocar ruína culposa em prejuízo para muitos. Ao sufocar esse “deus” com a sua luz de discernimento, cai-se num grave erro que vai procurar justificar-se por outro, como é simbolizado na narração bíblica. De fato, Eva recusa assumir a responsabilidade de seu erro: “A serpente me seduziu e então eu comi”. E Adão igualmente transfere a parcela de sua responsabilidade: “A mulher me fez provar do fruto da árvore, e eu comi”. (Gê-nesis 3, 12.13).
Pois bem, essa atitude de dar sempre a culpa a um terceiro ou de apontar o chamado “bode expiatório” é um dos mais vulgares mecanismos a serviço da morte.

Ponto Essencial

A força motriz que protege e desenvolve a vida humana é, sem dúvida, a experiência de se “fazer parte” do todo, de “estar a serviço” de um plano superior e de “ser confirmado” pela solidariedade do amor que tudo interliga e a tudo dá sentido. A visão cristã aprofunda e estimula esta dimensão humanitária, chamando a atenção para a integração do indivíduo com a sociedade, da racionalidade com o espiritual (e emocional), do subjetivo com o objetivo. Além disso, nos educa na entrega confiante frente a Deus bem como na disponibilidade no serviço fraterno diante dos outros. Desta maneira, a fé e a vivência cristãs têm por tarefa integrar as pessoas na multifacetada “relação de pertença” a tudo e todos, que são objeto de respeito, acolhida, serviço e transformação, num clima de “diversificação” (pluralidade) e “integração” (unidade).
Pela simples experiência humana já constatamos que só pode ser libertado da própria prisão quem se deixa inserir e se insere nessa multiforme relação. Ou seja, a dimensão pessoal da vida acontece e cresce na dimensão social, respeitosa e libertadora. O eu se afirma frente ao outro, a pessoa existe no encontro, a unidade se faz na comum-união. O Cristianismo abre novos horizontes sobre esta realidade, a fé nos chama e capacita para uma vivência mais profunda desta missão. Dizia Jesus, e o demonstrava por gestos: “Vim trazer vida; e que a tenham em abundância!”
Podemos concluir que “vida”, sobretudo em dimensão humana e cristã, é posse de si (identidade) e vinculação ao outro (pluralidade); é participação e comunhão; é autonomia e abertura no serviço; é também semente em evolução permanente, não raro castigada pelo vírus do imperfeito e ambivalente, pela dinâmica contrastante entre medo e desejo, pelo desequilíbrio na tendência de sair de si e voltar-se para dentro, pela desafiante tarefa de harmonizar o ser e o fazer, o individual e o social.

Observação de especialista

Há tempo, a revista “Veja” publicou uma entrevista com o cientista Ernest Becker. Ali o pesquisador observava que a vida é dinamizada pela “morte” e que podemos vencer a morte por um compromisso devotado com a “vida”. Mas por medo da morte, o homem foge da vida, destruindo a si mesmo. Quem sabe, Eva em nós é suscetível demais; em seus sonhos desprende-se da realidade, e do tempo foge para a eternidade, do finito imagina-se no infinito. Adão, por sua vez, é tranqüilo demais, seguro de sua razão que o vincula à matéria; como se no imanente pudesse esgotar a dimensão transcendente.
Resultado: o tiro sai pela culatra! Na sua tentativa de transformação, o homem provoca, sob vários aspectos, uma involução que mata, na raíz, muitas potencialidades e, no mínimo, vai adiando o sonho do novo. Simbolicamente a Bíblia lembra a punição que o homem se reserva:
“Amaldiçoada a serpente, ela há de rastejar sobre o ventre e comer o pó”. Ou seja, o espírito de instintiva auto-suficiência, como impulso ao poder que isola e oprime, é caracterizado como um eventual inimigo muito perigoso do homem e da criação.
Com razão observava Becker: “Todo mal causado pelos homens se baseia na tentativa de negar a sua condição de criatura, de superar a sua insignificância, de iludir-se que não é simples criatura e sim algo muito especial”. (“Veja”, páginas amarelas, 7/8/74).

Perspectiva

“Encontrei, um dia, uma criança a contemplar atentamente uma poça d’água em que um veículo deixara cair umas gotas de óleo, que se difundiram pela superfície, formando lindas cores. “Olha um pedaço de arco-íris que caiu na água! “, exclamava a pequena, cheia de alegria infantil pelo achado, remexendo com os dedinhos na água para ver mudar de cores e cambiantes o seu “pedaço de arco-íris”. Era tão interessante ver de perto um fragmento do misterioso arco que a criança só vira de longe, nas alturas celestes...” (H. Rohden, DEUS, p. 116).
O autor faz este comentário, em forma de prece: “Eu, porém, Senhor, não quero ver partido o arco-íris da minha vida a boiar sobre as águas sujas dos meus caminhos terrestres. Quero vê-lo, inteiriço e puro, nas alturas do teu céu. Quero ver o arco-íris da minha fé a arquear uma ponte de luz, de um a outro horizonte, desde as praias do aquém até aos litorais do além... E sobre esta ponte quero mandar passear todas as coisas boas e belas da minha vida, para salvá-las do grande naufrágio... Quero que tu, Senhor, estendas sobre o vasto dilúvio das minhas lágrimas este “Sinal da tua Aliança” com minha alma... (ib. p. 116-117).
Será que nessa reação sublimadora ele não corre risco de trair o instinto mais teimoso do ser humano: ser alguém muito especial? Por que ter medo das “águas sujas dos caminhos terrestres”? É por eles que nos movemos; é neles que construímos e realizamos nossas relações com objetos, situações, pessoas, e até com Deus. Afinal, é no pecado que se revela a graça; é no tempo que se insinua a eternidade, e na matéria vivenciamos o espiritual. É nos pobres e limitados detalhes do mundo que marca presença o divino.
Extasiar-se num arco-íris lá nas alturas, facilmente tem algo de alienação: fuga do imperfeito. E paradoxalmente, essa fuga feita em nome da vida, leva à morte! Temos de conviver com o imperfeitamente real deste mundo. Na humildade emancipados do orgulho, poderemos captar algo do arco-íris do Céu refletido nas coisas simples, embora um pouco sujas, desta terra.

Depoimento

De que servem razão insensível e a-social (Adão) ou sentimento imprudente desligado do real (Eva)?
Frente a relações deturpadas e estruturas injustas, muitos se perdem numa rebelião destrutiva e narcisística (fuga em bebida e tóxico, busca desregrada de emoções, cega agressividade, espiritualismo alienado messianismo milagreiro, etc.).
O grande místico Thomas Merton encontrou no chamado “desapego” um instrumento eficaz a serviço da vida. Nisto seguiu o grande mestre Ghandi que, no auto-esvaziamento, usou a não-violência para combater o mal pela raiz. Oportuno me parece lembrar o depoimento de L. King:
“Temos de dizer aos nossos mais fanáticos opositores: Igualaremos a vossa capacidade de infligir sofrimento com a nossa capacidade de suportá-la. Enfrentaremos a vossa força física com a nossa força moral. Fazei o que quiserdes, e continuaremos a amar-vos. Não podemos, em boa consciência, obedecer às vossas leis injustas e acatar o vosso injusto sistema, porque a não-cooperação com o mal é tanto uma obrigação moral quanto a cooperação com o bem; mas jogai-nos numa prisão, e nós ainda vos amaremos. Bombardeai as nossas casas, ameaçai os nossos filhos e, embora seja difícil, nós ainda vos amaremos. Mandai os vossos embuçados criminosos buscar-nos à meia-noite, arrastar-nos para uma estrada deserta e espancar-nos até deixar-nos semimortos, e ainda assim vos amaremos. Espalhai os vossos agentes de propaganda por todo o país, a fim de fazer parecer que não estamos culturalmente preparados para a integração, e ainda vos amaremos. Mas ficai certos de que a nossa capacidade de sofrer triunfará e um dia conquistaremos a nossa liberdade. Não só conquistaremos a liberdade para nós, mas apelaremos de tal maneira ao vosso coração e à vossa consciência, que também vos conquistaremos e a nossa vitória será dupla.” (24/12/67).
Eis o diagnóstico de Becker: “A dinâmica do mal é devida fundamentalmente à negação da condição de criatura. A dinâmica do mal é a tentativa de fazer o mundo ser diferente do que é, de fazer dele o que ele não pode ser, um lugar livre de acidentes, um lugar livre de impurezas, um lugar livre da morte.”
Não será justamente o chamado “pecado original” essa atitude de fuga onde o homem, desrespeitando as exigências, as possibilidades e as reais limitações do momento, apela a artimanhas profanas e religiosas para, artificialmente, resolver seus problemas? Na psicanálise se fala de “fuga à saúde” (fictícia!) onde o homem, na pretensão de ser como “deus”, foge da difícil tarefa de ser simplesmente agente. E aqui está uma fonte geradora de muita violência, no desrespeito à vida.

Postura ‘Pró-vida”

O homem plasmado do pó da terra, constituído na liberdade, capaz de dar nomes (exercer poder), chamado à convivência no amor, toma-se também fugitivo de sua responsabilidade. E nisso somos todos solidários (pecado original). Todos estamos de mãos sujas. Ombro a ombro se encontram o criminoso e o juiz, o santo e o pecador; todos igualmente sem condição de jogar a primeira pedra!

E neste mundo tão frágil e contraditório, tão cheio de desilusões, há quem levante para um trabalho de reconstrução, de libertação, de reconciliação. São pessoas com que a vida pode contar; pessoas que respondem, compreendem, reagem, irradiando a força da esperança na solidariedade. Estão também de mãos sujas, mas com elas fazem coisas bonitas! Assumem a condição humana e reconhecem que não têm o direito de omitir-se, de distanciar-se, de limitar-se a simples críticas. Ao olhar este mundo tão imperfeito, a sociedade rica em contradições, a família tão distante do ideal e a Igreja cheia de pecados, essas pessoas reconhecem:
“É a isso que eu pertenço, é isso que carrego dentro de mim, é dessa humanidade que eu faço parte.” E nessa realidade reconhecem seu ponto de partida para um trabalho de transformação e redenção. São também acossadas por medos, questionamentos, resistências. “Onde vou começar?” “Vou dar conta?” “Será que adianta?” “Será que não seria melhor largar isso para lá?”.
Surge aqui a tentação de dar meia volta e fugir do real, usando artimanhas de vida emocional, de comportamento social ou religioso. Instala-se um mecanismo de defesa onde, não raro, o anteriormente reprimido passa a ser dominador intolerante.
Mas há sempre e em todo canto os que enfrentam com dignidade os desafios da vida e aproveitam as chances do momento histórico, dispondo-se generosamente a gerar mais vida. Ainda existem entre nós, longe e perto, pais de família que, malgrado as dificuldades, perseveram uma convivência amorosa com os filhos; há cônjuges que, em dias adversos, dão prova de uma lealdade abnegada; há homens públicos que, estigmatizados por preconceitos, dão conta de se mostrar dignos na luta pelo bem comum; e há — e como! — profissionais do ensino que embora tão espezinhados, continuam a dar o mais precioso de si em beneficio da nossa juventude!
Em todo canto e sempre houve e há pessoas que se purificam e crescem em valor numa dedicação incondicional ao mundo e aos homens, à família e às instituições. Esta vocação humana na solidariedade, por elas encarnada, quebra a fatalidade do mal. E tais pessoas, a exemplo do próprio Cristo, tomam-se pecado” para “tirar o pecado do mundo”, no serviço à grande causa da vida.

Publicado na REVISTA DA EDUCAÇÃO - AEC - nº 81 - Nov.Dez/91