GERAR VIDA
EM MEIO A TANTA MORTE
“Dizemos violento o rio que tudo arrasta. Mas ninguém
diz violentas as margens que o comprimem”. (B. Brecht)
Frei Cláudio
Van Balen
Teólogo, Psicólogo, Pároco do
Carmo Sion em Belo Horizonte
O tema nos leva a refletir sobre a pessoa humana em sua postura
diante da vida, levando-a para uma plenitude maior ou desintegrando-a
por forças da morte. Logo de início lembramos que
a vida humana se origina e desenvolve na “relação”.
E relação é feita de “diferentes”,
não raro de aspectos contrastantes e sempre num clima dialético,
onde a vida pode passar pelo caminho da morte e onde a morte pode
receber a função de servir à vida. E já
estamos confrontados com a complexidade do tema.
Dinâmica
Básica
Na natureza biológica
operam duas forças: uma faz o organismo ficar intacto como
“unidade”, e outra o faz funcionar como “parte
do todo”, em benefício de ambos. Assim, cada célula
é um sistema com “identida-de”, e funciona
como parte de uma realidade maior. Na medida em que ambos estes
aspectos se relacionam em equilíbrio e mútua influência,
há uma situação ideal benéfica, a
serviço da vida. Mas onde se perturba o equilíbrio,
ali surgem forças destruidoras, a serviço da morte.
Também no nível da vida humana atuam duas forças,
dois “motivos” básicos que caracterizam a experiência
humana e lhe conferem dinâmica e direção.
A primeira faz a pessoa auto-afirmar-se (self ); a outra faz buscar
união com alguém ou algo (outro). Ambas são
essenciais, mas sua interligação e atuação
variam segundo a situação existencial e a história
pes-soal de cada um. Aqui a liberdade em formação
acentua a dialética.
O “SeIf-Motivo”
cuida da auto-afirmação, conservação,
defesa e expansão. Faz conservar posição
ou posse uma vez adquiridas, e ampliar a esfera de influência.
Confere energia para conquistar, manter e ampliar uma posição
própria nas relações sociais. Aqui se busca
reconhecimento das próprias qualidades e habilidades. Suscita
separações e divisões, e cria também
distância, quando está em jogo o próprio interesse
ou quando se considera valorizar a posição ou opinião
alheia como enfraquecimento da própria posição.
Capacita a concorrer, a (se) superar, ou até a ir contra
os próprios impulsos ou desejos imediatos.
O “Outro Motivo”, orientado à comunhão,
move em direção ao outro ou a algo no ambiente.
Faz buscar companheirismo, onde a pessoa pode sentir-se como parte
de um todo maior e mais importante. Contém o desejo de
formar uma unidade com o outro, inspirando abertura e receptividade.
Caracteriza-se ainda pela atitude de serviçalidade, de
auto-entrega. Está na origem de convivência, amizade,
encontros, onde não se pode procurar, sem mais, posse,
domínio e afirmação, porém deve mostrar-se
sensibilidade pelo bem alheio. Aqui há um campo muito fecundo
de tensões e conflitos, exigindo da vida humana que seja
contínua aprendizagem de respeito e doação.
Desequilíbrio
O desequilíbrio
entre os dois motivos básicos do comportamento humano,
sobretudo quando reforçado por estruturas sociais injustas,
está na origem de muitas formas de agressividade contra
a vida. A título de ilustração, uma notícia
veiculada pelo “Globo”: “Pedestres que atravessam
a rua fora da faixa que lhes é destinada; motoristas que
ignoram o sinal vermelho; o vizinho ouvindo musica aos berros;
passageiros acendendo cigarros ao lado de um não-fumante,
no ônibus; ruas e praias sujas, co-bertas de detritos; ónibus
parando fora do ponto — multiplicam..se os exemplos de desrespeito
aos direitos do cidadão, no dia-a-dia de uma cidade como
o Rio”.
Há tempo o “Jornal do Brasil” noticiou: “O
presidente da Associação Latino-Americana contra
maus tratos infantis, o psiquiatra José Raimundo da Silva
Lippi, disse que até o fim do ano 5 milhões de crianças
brasileiras terão sido maltratadas física ou psicologicamente.”
E “O Estado de Minas”: “Algumas crianças
não se desenvolvem e não crescem normalmente por
falta de amor e de cuidados. Essa conclusão foi apresentada
em um congresso médico de Paris que reuniu especialistas
do mundo inteiro... O traço peculiar desse nanismo psicossocial
é que ele às vezes se corrige espontaneamente, quando
a criança sai de seu ambiente familiar ou institucional
desfavorável. Pode surgir em famílias perturbadas,
que rejeitam a criança ou estão enfrentando dificuldades
emocionais ou financeiras.”
Na psicologia se
fala da problemática narcisítica que pertence inseparavelmente
à vida, como perturbação do comportamento
humano. Diariamente somos confrontados com distúrbios físicos,
psíquicos e espirituais e com desequilíbrios sócio-culturais,
que resultam em impotência, solidão, insegurança,
alienação, frustração, desilusões,
doenças, sofrimentos, injustiças, morte. E quando
algo assim nos acontece, experimentamos o próprio limite,
a fragilidade interior, contradições da convivência,
incertezas da vida, e um auto-sentimento ferido. Confrontados
com a própria pequenez e a debilidade da condição
humana, somos questionados, desafiados, perturbados. E agora José?
Assumir a realidade do jeito que é? Seria o ideal. E a
partir disso, fazer algo em busca de uma transformação
de si mesmo e da realidade. Porém, não raro envidamos
esforços teimosos para negar nossa limitação,
encobrir a ilusão, enfeitar a nossa ferida imagem ideal
imaginária e salvar artificialmente a nossa face... O que
exige um preço caro, como: stress emocional, uso de mecanismos
de defesa, resistência agressiva contra os que imaginamos
esta-rem ameaçando nosso exagerado sentimento de auto-valor
ou imagem do eu. E eis que surgem iniciativas que deterioram a
qualidade de vida, ameaçam a convivência e multiplicam
sinais de morte!
Vida em Harmonia: Fundamento
Segundo a perspectiva
cristã, a vivência humana tem como origem última
e inspiração básica o mistério da
Santíssima Trindade. Deus é “relação”,
ou pluralidade na unidade graças ao Amor, O Pai é
pai diante do Filho, nele e por ele; possui e conserva sua identidade
no outro e graças ao diferente, O mesmo vale do Filho perante
o Pai, e do Espírito Santo perante ambos. A dimensão
“relacional” faz de Deus um ser em contínuo
movimento interpessoal e de permanente renovação.
A partir deste dado, à luz da fé cristã,
a pessoa humana, feita à imagem e semelhança de
Deus, só pode afirmar-se como “indivíduo”
na medida em que se realiza como “interdivíduo”.
O individualismo coloca-se a serviço unilateral de uma
auto-realização egocêntrica, sufocando a energia
da vida e do amor.
Nas primeiras páginas da Bíblia, Adão e Caim
simbolizam o poder arrogante (medroso) e coisificador do indivíduo
que, para auto-afirmar-se, vê no outro um concorrente, uma
ameaça, um inimigo. Por isto, o elimina, provocando assim
a própria ruína.
Jesus é o “Novo Adão”, cuja dinâmica
pessoal e personalizante consiste em viver “para fora de
si”, em direção ao “Pai” e aos
“homens”, os dois absolutos em sua vida; e isto sob
o impulso do Espírito.
Nesta perspectiva, viver humanamente implica a capacidade e o
esforço constante de reproduzir em si o mistério
do próprio Deus, que é o mistério da “comum-união”,
de inter-relacionamento que gera doação e criatividade
na amorização. E isto, por sua vez, possibilita
e fomenta a descoberta e a construção da própria
identidade, na perspectiva e di-mensão de Deus.
Sonho-Realidade
A humanidade leva
consigo um sonho.., O sonho da realidade em harmonia, da vida
em desabrochamento, da convivência em clima de fraternidade.
Um ideal, onde as diferenças de raças, culturas,
sistemas políticos e religiões sejam respeitadas
e promovidas pela dinâmica da justiça e fraternidade,
gerando uma convivência pacífica e fecunda para todos
os povos.
Sonho tão distante neste nosso mundo cada vez mais polarizado,
onde num sistema económico único multinacionais
comandam as relações comerciais e industriais e
onde um poder monolítico determina verticalmente o exercício
da política. Sistema demoniacamente verticalista, onde
poucos usufruem das riquezas geradas pela ciência e técnica,
enquanto as grandes massas são sufocadas na pobreza ou
se arrastam na mais cruel das misérias, pólvora
da mais temível bomba atômica!
A indomável dialética entre o fator individual e
social, entre a realidade subjetiva e objetiva, entre o presente
e futuro, entre o bem-estar individual e coletivo, entre a identidade
pessoal e as estruturas sociais faz do homem um ser perseguido
por fantasmas e acorrentado por suas próprias criações.
Ou seja, um eterno prisioneiro na sua própria casa!
Basta olhar noticiário de TV, ler jornal ou observar a
realidade do dia-a-dia para logo perceber mecanismos variados
que geram morte. Insensibilidade de governantes, corrupção
de políticos, omissão dos cidadãos, exploração
de ricos, alienação de pobres, estruturas sociais
injustas. Ou mais concretamente, falta de saneamento básico,
ausência de urbanização, marginalização
do homem do campo, doenças endêmicas, desorganização
do ensino, falta de transporte, saúde pública desordenada,
ensino elitista, desemprego, burocracia, leis sociais deficientes,
justiça emperrada, analfabetismo, pobreza crescente, subnutrição,
prostituição, aborto, drogas, violência urbana,
infância marginalizada, etc.
Em grande parte, o homem é fruto do seu meio. “Dize-me
com quem andas...” Estruturas sociais injustas produzem
indivíduos com dose excessiva de agressividade contra a
vida e a convivência, multiplicando focos geradores de sintomas
de morte. Basta descuidar de uma vida mais digna para os indivíduos,
e logo toda a sociedade fica prejudicada.
Percebemos aqui uma dinâmica conflitante onde nos movemos
entre a vida e a morte.
Drama Simbolizado
Quem sabe, encontramos
uma luz na estória bíblica da “queda”,
analisando simbolicamente personagens, fatos e atitudes mencionadas.
A vida, na prospectiva
de sua dinâmica e na realização de suas inesgotáveis
possibilidades tem algo de “jardim” ou paraíso,
onde é bom deter-se. Mas para poder saborear a riqueza
do jardim, é mister não fixar-se nele passivamente
e, sim, ousar sair dele por um empreendimento transformador; e,
a seguir, tomar-se realmente seu dono ou morador. É, pois,
algo de futuro que tem a ver com desejo ou sonho. De fato, a suprema
lei da vida é o crescimento. Detê-la, é matá-la!
Uma dimensão
do eu
Apresenta-se-nos
a figura da “serpente”, que é uma dimensão
da pessoa humana enquanto sugere e insufla o abandono do “status
quo”, em busca de um estágio superior de vida e convivência.
Também as personagens envolvidas: Deus, Adão e Eva
são aspectos subjetivos (mesmo que não só!)
que habitam e atuam no íntimo de cada um. Neste sentido,
Deus representa a consciência, a luz auto-reguladora que
indica o caminho; Eva, o desejo do novo; e Adão, a racionalização
do poder. Vida tem a ver com um intercâmbio harmonioso destas
várias dimensões a serviço do desenvolvimento
progressivo da identidade pessoal, do intercâmbio relacional
e do lidar construtivo com fatos e situações.
A “serpente” é o desejo, ainda não estruturado,
que desperta para o inconformismo da adaptação e
vem sugerir o sonho do novo, onde a pessoa é estimulada
a se transcender, acima de fatores circunstanciais, tornando-se
agente de seu destino, dona da situação na tarefa
ou vocação de co-criadora. A sabedoria popular usa
o termo “serpente” enquanto implica mudança
(de pele) e astúcia; serpente ainda porque, simbolicamente,
lembra a força (pro) criadora que, mal aplicada, pode até
provocar ameaça à vida (veneno).
A fala da serpente, portanto, refere-se à voz interior
que deseja mudança e rebela-se contra a ordem existente,
enquanto oprime, para tomar o poder em suas próprias mãos,
numa nova ordem que seja mais libertadora. Encarna o espírito
de (r)evolução, de rebeldia em cada um de nós,
sugerindo a libertação da ordem primitiva. Daí
as palavras: “sereis como deuses: conhecedores do bem e
do mal.” (Gênesis 3,5.)
Olhando nossa realidade
Há tempo,
constata-se em nossa situação cultural uma rebelião
em andamento, “a rebelião do sentimento”. Propaga-se
a revalorização da emoção, do sentimento,
da dimensão subjetiva, da experiência pessoal. Antes
o coração que a cabeça; antes os sentidos
que os números; antes a natureza que a técnica;
antes o sentir que o pensar; antes o sonhar que o saber; antes
a vida que a burocracia; antes a espontaneidade que a organização.
Enfim, o sentimento do poder!
Quem não
deseja sentir-se sempre e logo bem disposto e feliz? Se não
o sou, logo visualizo fora de mim a causa do mal. Vamos sonhar
um mundo diferente, onde não haja centrais nucleares, armas
atómicas, poluição ambiental e ditaduras,
nem de militares nem do proletariado, nem Igreja autoritária
com tutela controladora, nem família fechada de machismo
alienante e opressor. Convém reagir! O novo se impõe,
é hora de mudar! Momento propício para a serpente
em nós insinuar alguma sugestão de mudança.
Outras dimensões
do eu
“Eva”,
nossa dimensão “evítica” pode representar
o contato com a realidade como um todo, a sensibilidade frente
aos desejos, a percepção do novo que está
para irromper. Seria a dimensão em nós que capta
a sugestão da serpente. Mas aqui se esconde um perigo,
O evítico em nós é ambicioso, impulsivo,
apressado; quer compreender, e logo fazer para ter, possuir. “A
mulher viu que era bom comer da árvore, pois era atraente
aos olhos e desejável enquanto fazia entender as coisas”.
(Gê-nesis 3,6). Porém, a realidade é complexa
e ambivalente. Não basta o gesto mágico de “pegar”
e “comer” para transformar a realidade. E há
outro perigo!
“Adão”, o aspecto “adamítico”
em nós representa esta tendência de reduzir o real
à mera dimensão lógica da ciência e
técnica, onde nos perdemos nos detalhes do imediatismo
e das quiméricas promessas do “aqui e agora”
(consumismo), desligando-nos do todo e, sobretudo, da dimensão
comunitária inerente à pessoa e à realidade
humana.
“Deus”, o aspecto “divino” do nosso interior
faz vislumbrar essa complexidade que nos envolve. E somos advertidos.
A busca do novo feita de maneira imatura, em vez de levar ao melhor,
pode provocar ruína culposa em prejuízo para muitos.
Ao sufocar esse “deus” com a sua luz de discernimento,
cai-se num grave erro que vai procurar justificar-se por outro,
como é simbolizado na narração bíblica.
De fato, Eva recusa assumir a responsabilidade de seu erro: “A
serpente me seduziu e então eu comi”. E Adão
igualmente transfere a parcela de sua responsabilidade: “A
mulher me fez provar do fruto da árvore, e eu comi”.
(Gê-nesis 3, 12.13).
Pois bem, essa atitude de dar sempre a culpa a um terceiro ou
de apontar o chamado “bode expiatório” é
um dos mais vulgares mecanismos a serviço da morte.
Ponto Essencial
A força motriz
que protege e desenvolve a vida humana é, sem dúvida,
a experiência de se “fazer parte” do todo, de
“estar a serviço” de um plano superior e de
“ser confirmado” pela solidariedade do amor que tudo
interliga e a tudo dá sentido. A visão cristã
aprofunda e estimula esta dimensão humanitária,
chamando a atenção para a integração
do indivíduo com a sociedade, da racionalidade com o espiritual
(e emocional), do subjetivo com o objetivo. Além disso,
nos educa na entrega confiante frente a Deus bem como na disponibilidade
no serviço fraterno diante dos outros. Desta maneira, a
fé e a vivência cristãs têm por tarefa
integrar as pessoas na multifacetada “relação
de pertença” a tudo e todos, que são objeto
de respeito, acolhida, serviço e transformação,
num clima de “diversificação” (pluralidade)
e “integração” (unidade).
Pela simples experiência humana já constatamos que
só pode ser libertado da própria prisão quem
se deixa inserir e se insere nessa multiforme relação.
Ou seja, a dimensão pessoal da vida acontece e cresce na
dimensão social, respeitosa e libertadora. O eu se afirma
frente ao outro, a pessoa existe no encontro, a unidade se faz
na comum-união. O Cristianismo abre novos horizontes sobre
esta realidade, a fé nos chama e capacita para uma vivência
mais profunda desta missão. Dizia Jesus, e o demonstrava
por gestos: “Vim trazer vida; e que a tenham em abundância!”
Podemos concluir que “vida”, sobretudo em dimensão
humana e cristã, é posse de si (identidade) e vinculação
ao outro (pluralidade); é participação e
comunhão; é autonomia e abertura no serviço;
é também semente em evolução permanente,
não raro castigada pelo vírus do imperfeito e ambivalente,
pela dinâmica contrastante entre medo e desejo, pelo desequilíbrio
na tendência de sair de si e voltar-se para dentro, pela
desafiante tarefa de harmonizar o ser e o fazer, o individual
e o social.
Observação
de especialista
Há tempo,
a revista “Veja” publicou uma entrevista com o cientista
Ernest Becker. Ali o pesquisador observava que a vida é
dinamizada pela “morte” e que podemos vencer a morte
por um compromisso devotado com a “vida”. Mas por
medo da morte, o homem foge da vida, destruindo a si mesmo. Quem
sabe, Eva em nós é suscetível demais; em
seus sonhos desprende-se da realidade, e do tempo foge para a
eternidade, do finito imagina-se no infinito. Adão, por
sua vez, é tranqüilo demais, seguro de sua razão
que o vincula à matéria; como se no imanente pudesse
esgotar a dimensão transcendente.
Resultado: o tiro sai pela culatra! Na sua tentativa de transformação,
o homem provoca, sob vários aspectos, uma involução
que mata, na raíz, muitas potencialidades e, no mínimo,
vai adiando o sonho do novo. Simbolicamente a Bíblia lembra
a punição que o homem se reserva:
“Amaldiçoada a serpente, ela há de rastejar
sobre o ventre e comer o pó”. Ou seja, o espírito
de instintiva auto-suficiência, como impulso ao poder que
isola e oprime, é caracterizado como um eventual inimigo
muito perigoso do homem e da criação.
Com razão observava Becker: “Todo mal causado pelos
homens se baseia na tentativa de negar a sua condição
de criatura, de superar a sua insignificância, de iludir-se
que não é simples criatura e sim algo muito especial”.
(“Veja”, páginas amarelas, 7/8/74).
Perspectiva
“Encontrei,
um dia, uma criança a contemplar atentamente uma poça
d’água em que um veículo deixara cair umas
gotas de óleo, que se difundiram pela superfície,
formando lindas cores. “Olha um pedaço de arco-íris
que caiu na água! “, exclamava a pequena, cheia de
alegria infantil pelo achado, remexendo com os dedinhos na água
para ver mudar de cores e cambiantes o seu “pedaço
de arco-íris”. Era tão interessante ver de
perto um fragmento do misterioso arco que a criança só
vira de longe, nas alturas celestes...” (H. Rohden, DEUS,
p. 116).
O autor faz este comentário, em forma de prece: “Eu,
porém, Senhor, não quero ver partido o arco-íris
da minha vida a boiar sobre as águas sujas dos meus caminhos
terrestres. Quero vê-lo, inteiriço e puro, nas alturas
do teu céu. Quero ver o arco-íris da minha fé
a arquear uma ponte de luz, de um a outro horizonte, desde as
praias do aquém até aos litorais do além...
E sobre esta ponte quero mandar passear todas as coisas boas e
belas da minha vida, para salvá-las do grande naufrágio...
Quero que tu, Senhor, estendas sobre o vasto dilúvio das
minhas lágrimas este “Sinal da tua Aliança”
com minha alma... (ib. p. 116-117).
Será que nessa reação sublimadora ele não
corre risco de trair o instinto mais teimoso do ser humano: ser
alguém muito especial? Por que ter medo das “águas
sujas dos caminhos terrestres”? É por eles que nos
movemos; é neles que construímos e realizamos nossas
relações com objetos, situações, pessoas,
e até com Deus. Afinal, é no pecado que se revela
a graça; é no tempo que se insinua a eternidade,
e na matéria vivenciamos o espiritual. É nos pobres
e limitados detalhes do mundo que marca presença o divino.
Extasiar-se num arco-íris lá nas alturas, facilmente
tem algo de alienação: fuga do imperfeito. E paradoxalmente,
essa fuga feita em nome da vida, leva à morte! Temos de
conviver com o imperfeitamente real deste mundo. Na humildade
emancipados do orgulho, poderemos captar algo do arco-íris
do Céu refletido nas coisas simples, embora um pouco sujas,
desta terra.
Depoimento
De que servem razão
insensível e a-social (Adão) ou sentimento imprudente
desligado do real (Eva)?
Frente a relações deturpadas e estruturas injustas,
muitos se perdem numa rebelião destrutiva e narcisística
(fuga em bebida e tóxico, busca desregrada de emoções,
cega agressividade, espiritualismo alienado messianismo milagreiro,
etc.).
O grande místico Thomas Merton encontrou no chamado “desapego”
um instrumento eficaz a serviço da vida. Nisto seguiu o
grande mestre Ghandi que, no auto-esvaziamento, usou a não-violência
para combater o mal pela raiz. Oportuno me parece lembrar o depoimento
de L. King:
“Temos de dizer aos nossos mais fanáticos opositores:
Igualaremos a vossa capacidade de infligir sofrimento com a nossa
capacidade de suportá-la. Enfrentaremos a vossa força
física com a nossa força moral. Fazei o que quiserdes,
e continuaremos a amar-vos. Não podemos, em boa consciência,
obedecer às vossas leis injustas e acatar o vosso injusto
sistema, porque a não-cooperação com o mal
é tanto uma obrigação moral quanto a cooperação
com o bem; mas jogai-nos numa prisão, e nós ainda
vos amaremos. Bombardeai as nossas casas, ameaçai os nossos
filhos e, embora seja difícil, nós ainda vos amaremos.
Mandai os vossos embuçados criminosos buscar-nos à
meia-noite, arrastar-nos para uma estrada deserta e espancar-nos
até deixar-nos semimortos, e ainda assim vos amaremos.
Espalhai os vossos agentes de propaganda por todo o país,
a fim de fazer parecer que não estamos culturalmente preparados
para a integração, e ainda vos amaremos. Mas ficai
certos de que a nossa capacidade de sofrer triunfará e
um dia conquistaremos a nossa liberdade. Não só
conquistaremos a liberdade para nós, mas apelaremos de
tal maneira ao vosso coração e à vossa consciência,
que também vos conquistaremos e a nossa vitória
será dupla.” (24/12/67).
Eis o diagnóstico de Becker: “A dinâmica do
mal é devida fundamentalmente à negação
da condição de criatura. A dinâmica do mal
é a tentativa de fazer o mundo ser diferente do que é,
de fazer dele o que ele não pode ser, um lugar livre de
acidentes, um lugar livre de impurezas, um lugar livre da morte.”
Não será justamente o chamado “pecado original”
essa atitude de fuga onde o homem, desrespeitando as exigências,
as possibilidades e as reais limitações do momento,
apela a artimanhas profanas e religiosas para, artificialmente,
resolver seus problemas? Na psicanálise se fala de “fuga
à saúde” (fictícia!) onde o homem,
na pretensão de ser como “deus”, foge da difícil
tarefa de ser simplesmente agente. E aqui está uma fonte
geradora de muita violência, no desrespeito à vida.
Postura ‘Pró-vida”
O homem plasmado
do pó da terra, constituído na liberdade, capaz
de dar nomes (exercer poder), chamado à convivência
no amor, toma-se também fugitivo de sua responsabilidade.
E nisso somos todos solidários (pecado original). Todos
estamos de mãos sujas. Ombro a ombro se encontram o criminoso
e o juiz, o santo e o pecador; todos igualmente sem condição
de jogar a primeira pedra!
E neste mundo tão
frágil e contraditório, tão cheio de desilusões,
há quem levante para um trabalho de reconstrução,
de libertação, de reconciliação. São
pessoas com que a vida pode contar; pessoas que respondem, compreendem,
reagem, irradiando a força da esperança na solidariedade.
Estão também de mãos sujas, mas com elas
fazem coisas bonitas! Assumem a condição humana
e reconhecem que não têm o direito de omitir-se,
de distanciar-se, de limitar-se a simples críticas. Ao
olhar este mundo tão imperfeito, a sociedade rica em contradições,
a família tão distante do ideal e a Igreja cheia
de pecados, essas pessoas reconhecem:
“É a isso que eu pertenço, é isso que
carrego dentro de mim, é dessa humanidade que eu faço
parte.” E nessa realidade reconhecem seu ponto de partida
para um trabalho de transformação e redenção.
São também acossadas por medos, questionamentos,
resistências. “Onde vou começar?” “Vou
dar conta?” “Será que adianta?” “Será
que não seria melhor largar isso para lá?”.
Surge aqui a tentação de dar meia volta e fugir
do real, usando artimanhas de vida emocional, de comportamento
social ou religioso. Instala-se um mecanismo de defesa onde, não
raro, o anteriormente reprimido passa a ser dominador intolerante.
Mas há sempre e em todo canto os que enfrentam com dignidade
os desafios da vida e aproveitam as chances do momento histórico,
dispondo-se generosamente a gerar mais vida. Ainda existem entre
nós, longe e perto, pais de família que, malgrado
as dificuldades, perseveram uma convivência amorosa com
os filhos; há cônjuges que, em dias adversos, dão
prova de uma lealdade abnegada; há homens públicos
que, estigmatizados por preconceitos, dão conta de se mostrar
dignos na luta pelo bem comum; e há — e como! —
profissionais do ensino que embora tão espezinhados, continuam
a dar o mais precioso de si em beneficio da nossa juventude!
Em todo canto e sempre houve e há pessoas que se purificam
e crescem em valor numa dedicação incondicional
ao mundo e aos homens, à família e às instituições.
Esta vocação humana na solidariedade, por elas encarnada,
quebra a fatalidade do mal. E tais pessoas, a exemplo do próprio
Cristo, tomam-se pecado” para “tirar o pecado do mundo”,
no serviço à grande causa da vida.
Publicado na REVISTA DA EDUCAÇÃO - AEC - nº
81 - Nov.Dez/91