RELIGIÃO – TRADIÇÃO
Introdução
De frente ao Futuro
Introdução
----------Religião
liga profano e sagrado, pessoa humana e divindade, indivíduo
e comunidade, tempo e eternidade, fé e história.
Conseqüentemente, gera um determinado modo de pensar e de
se comportar, influenciando significativamente a convivência.
Tradição é um padrão de pensamento,
comportamento e sensibilidade que se desenvolve através
do tempo e se mostra rico em sentido, i.é, integrado na
realidade e útil à convivência. Na modernidade,
há uma tendência a resistir contra tradições.
Desconfia-se de tudo que tem a ver com imposição,
embora a confiança moderna no novo também seja uma
tradição, ao menos desde a revolução
francesa. Porém, o que, fora da tradição,
a razão pretende impor, à força, corre o
risco de não passar de uma quimera, a não ser que
a tradição se encontre gasta, sem cumprir seu sentido.
Religião
como passagem para o novo.
----------A
dependência da confiança moderna do novo, do verdadeiro
e do bom – também inerentes à tradição
– mostra que conservativo e progressivo não se excluem;
ou seja, não se trata da luta entre tradição
e renovação. Temos de cultivar uma tradição
dinâmica, buscando sempre traços de vida digna, caminhos
de progressiva integração. Em sua essência,
religião é o protótipo de uma tradição
dinâmica, inovadora. Ela, pois, por estar a serviço
de uma vida mais plena, sugere a possibilidade de confiar na tradição
e, ao mesmo tempo, na renovação, e vice-versa.
----------Na
religião, a tradição adquire sentido por
desvelar, de um modo determinado, o sentido do presente. A verdade
da atualidade se revela na relação que se faz com
palavras e imagens da tradição. Religião
tem a ver com dedicação ao sagrado e a Deus - como
o Santo. Este Deus, oculto, está presente na atualidade
e no passado, mas só pode revelar-se quando ambos se iluminam,
mutuamente, por confirmação ou questionamento.
----------Acima
de tudo está a história com suas relações
que têm de visar à integração de fé
e vida, de presente e futuro, de sociedade e seu bem-estar. E
isto, em situações de crise, pode exigir que a (des)-ordem
existente seja quebrada a fim de que, na liberdade, novas possibilidades
se apresentem em formas de pensar e (con)viver.
Assumir
a vulnerabilidade.
----------O
profetismo religioso tem mostrado que religião não
tem como função proteger-nos contra mudança
mas, antes, deixar tudo em aberto, até mesmo nossa própria
identidade. Frente à premência de mudança
social, a tradição cristã lembra que nossa
contribuição não se liga tanto à nossa
riqueza, mas à nossa vulnerabilidade. Esta nos faz partilhar
a historicidade alheia em clima de compaixão em vista de
uma cultura de solidariedade. Temos de nos fazer mediadores de
novos sinais de divina compaixão.
----------Uma
vez que tradições religiosas se dirigem a algo diferente
de si mesmas, a tradição não é nossa
riqueza como posse, mas como correnteza ou inspiração
a oferecer formas em que, significativamente, experimentamos,
em uma aparente ausência de Deus, sinais de seu Reino. A
ordem em vigor, devido à sua pretensa plenitude de sentido,
dificulta ver a luz que a realidade contém. Graças
a situações de insegurança, com desordem
e vazio, algo nos é comunicado. Esta certeza mantém
tradições religiosas em alerta, fazendo-as superar
o espírito conservador com sua inércia, que parece
ser o chamado “pecado contra o Espírito Santo”
Além
do Cinismo
----------O
aspecto cínico de nosso tempo avalia sentido e direcionamento
como algo que simplesmente se impõe e a que nos devemos
submeter. Impinge a convicção que nós mesmos
temos de tornar o mundo significativo e bom, freando o caos ameaçador
com sua ausência de sentido. Se, no passado, isto já
passou por missão divina e glória da humanidade,
hoje é sentido como um fardo pesado e uma missão
impossível. Se já houve certo otimismo progressista,
hoje sofremos um pessimismo desenvolvimentista. Resta somente
admitir que nossa crescente capacidade de dominar o mundo, (re)estruturando-o
e ordenando-o, progressivamente, esbarra, cada vez de novo, nas
forças “adversas” da realidade cruel com estupidez
humana
----------Acontece
que a religião ajuda para que vivenciemos nossa insegurança
como oportunidade de (re)nascimento espiritual. Se o sagrado pode
inspirar medo, no que tem de mais profundo, ele faz sempre ressoar
a mensagem da revelação bíblica: “Não
temais!” Na mídia de massa, desponta o culto a catástrofes
como sinal da impotência e do medo de nossa cultura, insinuando
que violência e fracasso, marca da história, revelam
a assustadora profundidade de nossa realidade. Aqui, se impõe
a contribuição das tradições religiosas
: em seus símbolos e narrações, em seus rituais
e teorias, elas erguem um dique contra esse cinismo que, em nossa
cultura, volta e meia, se impinge. Onde a fatalidade da granítica
realidade parece esmagar tantos, estas tradições
criam espaço para dor e desespero, para esperança
e criatividade. Aqui, a fé religiosa insiste que, do nada,
é capaz de nascer algo novo e que o vazio e o abandono
não merecem ser suportados em uma passiva conformidade
com aniquilamento.
----------Poder
ocupar um espaço, junto com um condenado – Jesus
– deixando envolver-se por um Deus que se aproximou de nós
sem nos abandonar em extrema impotência, isto abre uma visão
e cria expectativa em meio a uma densa escuridão. Não
se exige de nós que falemos e façamos, sozinhos,
o que realmente cremos; nem que guardemos da tradição
somente o que faz sentido para nós. A importância
de tradições é que apontam palavras e gestos
significativos, quando nós já não sabemos
o que dizer e fazer. Se no mais fundo do coração,
realmente acredito na ressurreição da carne e na
vida eterna, isto nem posso saber. Mas há uma comunidade
que envolve com palavras e atitudes essa fé; palavras que
criam espaço, convidando a entrar nele, apropriando-nos
dessas palavras. Desta forma sabemos - mesmo sendo difícil
acreditar – que há algo a esperar quando, humanamente
falando, toda expectativa parece impossível.
Relativizar
Tradições
----------Se
a religião cultiva abertura ao que nos é apresentado
– seja crido ou não - isto relativiza a importância
de tradições. Não raro, dentro e fora de
igrejas, insinua-se que, ao perderem o contato com a tradição
cristã, as pessoas fazem Deus desaparecer de sua vida.
Como se Deus coincidisse com a fé em Deus e não
se deixasse encontrar em rastros ou em sinais dos tempos. Pode
ser verdade que, não raro, sem tradições,
nos tornamos manipuláveis. Fato é também
religião e cultura se mostram superficiais sem a experiência
do que tradições testemunham. Por outro lado, tradições
podem esvaziar-se apesar de seu valor potencial. Certas particularidades
da tradição foram abolidas, não tendo mais
peso dentro de um contexto atual. Se, depois, são resgatadas,
é porque se tornou possível dar-lhes um sentido
novo.
----------Uma
tradição permanece quando a caminhada de gerações
tem muito em comum. Foi o caso em uma época de uniformidade
cultural e religiosa e sem grandes mudanças. Nesse caso,
a forma de vida dos filhos prolonga a forma de vida de seus pais
e avós. Atualmente, as gerações têm
de encontrar e elaborar sua própria forma de viver e crer.
Isto requer que tradições se abram, desprendendo
valores ocultos, capazes de iluminar novas situações.
Nesse sentido, Jesus lembrou que temos de discernir, no tesouro
da tradição, coisas novas e velhas (Mt 13,52).
----------
Tradição e atualidade têm de iluminar-se mutuamente,
sem o isolamento de um dos dois e no respeito a ambos. Caso contrário,
em tempo de crise – mudanças que anseiam pelo novo
– acaba-se jogando fora o fruto junto com a casca. Se a
imagem continua a mesma, sua mensagem se renova a partir de potencialidades,necessidades
e desafios de quem a contempla.
Em vez de
relativismo, abertura
----------Pelas
tradições pode chegar à nova geração
algo que os antepassados não cogitaram. De fato, o que
é importante para o futuro, isso somente o futuro o comprovará.
Cada época tem sua própria contribuição
a dar para o que significa que o Reino de Deus está no
meio de nós. Cabe a cada geração testemunhar
o que lhe parece importante, permitindo que outras gerações
o façam de modo diferente, porém graças ao
que receberam de seus antepassados. Se ninguém pode dominar
nos outros o que lhes transmite, a linguagem-mensagem é
uma riqueza que lhes deve impor essa postura. Em vez de relativismo,
adotar tal abertura que permita pensar, dizer e realizar coisas
novas, nunca d’antes relatadas.
----------Como
a vida não se esgota no passado nem no presente, tampouco
podemos predeterminar o futuro. Longe do pensamento único,
temos de adotar o pluralismo nas tradições em clima
de diálogo, descoberta e intercâmbio. (cf: Torre
de Babel e Pentecostes) Também no Cristianismo aguardamos
novos impulsos, tanto a partir de outras tradições
como de novas experiências e novos modos de pensar em nosso
próprio meio. Como tudo, nessa rede de variações,
está teologicamente interconectado, isto permanece algo
oculto. Tudo que nos chegou do passado é incapaz de determinar
o que futuras gerações, em nível de fé,
vão experimentar, pensar e dizer.
Necessidade
de Debate
----------Há
algo ambivalente em nossa religião. Em sua origem, o Cristianismo
aderiu à escolha de acolher e valorizar fracos e indefesos,
porém, em sua tradição, passou a excluir
muitos desses fracos. Basta passar pelas páginas da história
da Igreja e olhar o comportamento do poder eclesiástico
atual bem como o de tantas igrejas. Outro fato é que, historicamente,
nossa avaliação da autenticidade dessa dimensão
está sujeita a mudanças. Por mais que nossa fé,
em sua essência, esteja em continuidade com o passado, muito
do que agora consideramos importante não se enquadra em
critérios que, séculos atrás, se adotavam.
E, hoje, não somos capazes de prever como, no futuro, lidarão
com o que nós cremos e fazemos, ensinamos e celebramos
em matéria de fé e moral. Mesmo assim, há
sempre limites que, atualmente, não podem ser ultrapassados,
porém critérios atuais jamais podem ser considerados
absolutos.
----------A
visão que se tinha e se tem de Deus e o modo de servir
a ele podem, não raro, estar manchados por imperfeições
de elementos culturais. Lembremo-nos do “Pai” nosso
e “não nos deixeis cair em tentação”;
e da Ave Maria com seu “rogai por nós pecadores”.
Somos convidados a uma postura crítica a fim de purificar,
através dos tempos, a tradição a fim de que
resgatemos o vigor de sua correnteza. A tradição
evolui em progressiva claridade e pureza, o que implica que certos
aspectos, com o correr do tempo, merecem ser reavaliados e até
ser mudados, corrigidos ou completados. Autoridades e fiéis
costumam ter dificuldade em aceitar essa fragilidade da tradição,
ou melhor, essa fragilidade humana de viver a autenticidade da
tradição. Basta que nos lembremos dos mais de 100
pedidos de perdão do papa João Paulo II. A ambivalência
da tradição não a priva de sentido, mas exige
a humildade do senso crítico e do diálogo. Deus,
a vida, o amor, a pessoa humana, a história são
sempre mais.
Respeito
----------Antigas
e novas modalidades, na tradição, derivam seu valor
do fato de que (re)evocaram rastros do contato com as dimensões
mais profundas da realidade com suas relações interpessoais
e transcendentais. A comunidade eclesial deve conscientizar-se
de que valores antigos e novos lhe são confiados e que
estes dependem de sua solicitude em lidar com a riqueza da tradição.
De per si, deveria haver espaço na Igreja para uma boa
convivência entre grupos conservadores e progressistas.
Tradições sobrevivem e mudam em sua permanente capacidade
de inspirar nossa fé que gera a coragem da esperança
e a solidariedade do amor.
* * *
Frei Cláudio
van Balen
(Fonte: Erik BORGMAN,
Religies : tradities van openheid, em TGL, 2003, pp. 501-516)